
Foto: Genilson Coutinho
Orgulho, acrobacia e resistência: balizas gays e trans conquistam espaço no 2 de Julho, a data mais popular da Bahia
Marcelo Cerqueira, @marcelocerqueira.oficial
Por muito tempo, a imagem da baliza acrobática, aquela artista que se apresenta à frente da fanfarra ou banda marcial com giros, passos de dança e acrobacias, foi associada exclusivamente ao padrão feminino cisgênero. Mas esta tradição, profundamente arraigada nas apresentações do 2 de Julho, a data cívica mais importante para a história da Bahia, está sendo ressignificada. Cada vez mais jovens LGBT+, especialmente pessoas trans e travestis, encontram na figura da baliza um palco para brilhar, protestar e resistir, em perfeita sintonia com o espírito popular da festa.
O 2 de Julho comemora a Independência da Bahia, que simboliza a vitória do povo baiano sobre o domínio colonial português após o levante popular iniciado em 1822. O movimento, liderado pelo povo simples, expulsou as tropas portuguesas, definitivamente em 2 de julho de 1823 consolidou a autonomia baiense. É um feriado carregado de sentimento de pertencimento e luta, por isso atrai multidões para as ruas, numa celebração marcada por cores, batuques, protestos, políticos, cabe tudo em nosso desfile com muita emoção. As balizas, tradicionalmente, são as estrelas dos desfiles, principalmente quando passam em frente à Igreja do Rosário, momento em que o público se agita e vibra com a beleza dos saltos, das poses e da elegância dos trajes. No entanto, nem sempre esse protagonismo foi garantido a pessoas gays, trans e travestis. Durante décadas, houve exclusão explícita de participantes LGBT+ sob argumentos de que adereços e movimentos femininos não combinariam com corpos masculinos.
Eu só descobri esse mundo quando recebi a denúncia de um jovem homossexual, do interior da Bahia, que ensaiou toda a coreografia, mas foi impedido de desfilar porque era gay, logo o Grupo Gay da Bahia (GGB) entrou em ação. A partir de casos como esse, o movimento se mobilizou para garantir igualdade de participação em concursos, apresentações e campeonatos de bandas marciais e fanfarras. Hoje, após assembleias e mudanças de regulamentos, não há mais qualquer impedimento legal para que travestis e pessoas trans ocupem o posto de baliza acrobática. Foi uma conquista grande. Antes se perdia ponto por causa de acessórios considerados femininos, como leques ou decotes, usados por de sexo masculino atribuído ao nascer. Isso já caiu por terra, e hoje qualquer um pode ser avaliado pela técnica, independente do gênero.
Na prática, as balizas gays e trans contribuem para revitalizar a tradição do 2 de Julho, trazendo novas coreografias, mais ousadia e uma presença que enriquece ainda mais a festa. Muitos profissionais do meio destacam que essas pessoas costumam ter desenvoltura, flexibilidade e criatividade impressionantes, atributos valorizados nos quesitos de avaliação de campeonatos de fanfarras. A baliza tem a função de encantar o público e ornamentar a apresentação, enquanto o balizador, figura geralmente masculina, atua como guia, comandando o passo, organizando o ritmo e a disciplina do grupo. Ambos são essenciais para a grandiosidade do cortejo, mas é a baliza que costuma roubar todos os olhares e aplausos do povão.
Essa mudança de mentalidade também reflete um avanço civilizatório. O 2 de Julho, em essência, representa a resistência popular e a liberdade, valores que dialogam muito com a nossa luta por visibilidade, respeito e igualdade. Ver jovens gays e trans dançando, saltando e exibindo o seu talento no espaço público, local que antes eram excluídos, mostra que a Bahia, particularmente Salvador está dando saltos no compasso contra a discriminação e a favor da diversidade e inclusão. É de uma beleza plástica fascinante ver as balizas passarem desfilando vestindo trajes coloridos, com bastões adornados protagonizando performances incríveis que fazem o público vibrar como nunca. Esse fato demostra que a tradição ganhou novas expressões e personagens, conectando a ancestralidade da nossa independência do elemento português com os dias atuais de um Brasil que avança, ainda que lento na inclusão e no combate ao preconceito.
Para as pessoas trans, assumir a baliza acrobática é mais do que desfilar. É protagonizar com a beleza de feminino e a alegria do povo, afirmando-se cada uma no espaço público e de poder. É, um grito equalizado de resistência, é a demonstração da força dos heróis da Independência da Bahia. No fim de tudo, a baliza acrobática, seja menina cis, gay, trans ou travesti, estão cumprindo o seu papel cívico de celebrar com arte a liberdade. E não existe palco mais maravilhoso para brilhar que 2 de Julho, cuidadosamente organizado pela Fundação Gregório de Matos da Prefeitura de Salvador.