
São João Também é Nosso: Diversidade, Tradição e Orgulho LGBT+ no Arraiá
Marcelo Cerqueira,
Em junho, o Nordeste se veste de chita, acende fogueiras, prepara bandeirolas coloridas embalados ao som do forró bebendo licor, dançando agarradinho até Chico chegar – sem pressa para acabar. Essa tradição tão viva nas terras nordestinas, na verdade foi o anúncio do nascimento do profeta João Batista, primo de Jesus.
Naquele tempo alguns meses antes do nascimento de Jesus, época do imperador Herodes, a Judéia estava ocupada pelos soldados romanos, o clima político não era de paz. Isabel, prima da virgem Maria era mulher do sacerdote Ziarias e o casal não tinha filhos, ela já tinha uma idade avançada para gerar um bebê. Entretanto, esse milagre aconteceu. As duas estavam gravidas, Isabel que morava no morro fez um acordo com que assim que o menino a nascesse daria um sinal acendendo uma fogueira. Assim que Maria viu a fogueira correu ladeira acima para ajudar a prima. João nasceu 24 de junho e Jesus, seis meses depois dia 25 de dezembro. A festa de São João e uma tradição que atravessa séculos e se torna mais inclusiva.
É tempo de São João — uma das festas mais populares e amadas do interior do país, e mais intensa na região Nordeste. Mas junho também é o Mês do Orgulho LGBT+ que traz as cores do arco ires para a festa. Essa celebração teve início em 1969 no bar chamado Stonewall Inn no bairro do Village em Nova York com coragem e determinação os LGBT+ venceram a opressão da polícia novaiorquina. O que alguns conservadores e muitos ainda não percebem é que essas duas expressões culturais e políticas não só podem conviver, como se fortalecem juntas.
Historicamente marcada por símbolos de heteronormatividade, como o casamento caipira e os papéis de “noivo” e “noiva”, a festa junina foi durante muito tempo um território, proibido em que pessoas LGBT+ precisavam se esconderem ou vestirem outro traje representando por meio de comportamento e características uma personagem para que a sua existência coubesse na tradição. Em municípios pequenos a presença de gays, lésbicas e travestis ainda é invisível por conta desse binarismo.
No entanto, isso vem mudando. Com o avanço das lutas sociais e a presença crescente da diversidade ocupando os espaços públicos, os arraiais começaram a se pintar com as nossas cores do arco-íris, sobretudo nas áreas urbanas. Na cidade não era essa maravilha que é hoje em dia, existia um passado de exclusão. As bichas femininas que apaixonadas pelos ritmos, roupas, coreografias, coitadas ensaiava exaustivamente, mas na hora de vestir a roupa eram excluídas. Isso era possível porque que havia no estatuto da Federação um artigo determinando o que seria casal para efeitos das apresentações só pode ser homem e mulher, par não-binário fazia o grupo perder pontos. O Grupo Gay da Bahia em entendimento com a Federação acabou com essa norma cruel, e agora já pode.
Hoje, é normal casamentos caipiras com dois noivos, duas noivas, par formado por um homem e uma travesti, bem como o entendimento e adoção não-binária. Existir quadrilhas juninas com drags, pessoas trans, travesti, não-binaria e performances irreverentes e militância é pura alegre. Presenciamos artistas LGBTQIAPN+ conquistando palcos nas festas populares, nossas comunidades celebrando o São João com respeito, afeto e liberdade de expressão.
São João é uma festa que além das comidas deliciosas traz a oportunidade de reivindicar pertencimento, no entendimento que a cultura popular brasileira é intrinsecamente muito diversa. Não existe festa típica que exista que não tenha a contribuição direta de pessoas LGBT+, pretas, indígenas, e, claro das periferias brasileiras. Dar valor e promover a presença LGBT+ nas festas juninas é sobretudo reconhecer a pluralidade das pessoas que constrói e mantem essa celebração.
Entre fogueiras e balões os desafios continuam. Ainda temos que fazer o enfrentamento dos casos de LGBTfobia estrutural em ambientes festivos, resistência de grupos conservadores e exclusão simbólica em muitas programações oficiais.
Por isso, é fundamental afirmar que o “São João também é nosso”. A palha, a sanfona e o coração matuto não têm dono, têm história, têm cultura, e têm orgulho.
Junho é tempo de forró e de luta. De milho cozido e de visibilidade para quem vive fora do armário. Que cada arraiá seja também um espaço de resistência, de afeto e de celebração da diversidade que existe e pulsa neste país. Onde há festa, há corpo, política e orgulho que também extra na dança coreografada das aquilhas.